Conto: Começar de novo

Abriu os olhos, como num despertar, embora não estivesse dormindo. Num instante estava entediado em seu trabalho, maldizendo suas escolhas e, no outro, surgiu em outro lugar. Quase morreu de susto, empalideceu e o coração acelerou. Quando se acalmou, começou a analisar o entorno e viu-se sentado num banco de praça, que logo reconheceu: a praça central de sua cidade. No entanto, tudo era diferente, a praça e a cidade. Na verdade, conseguiu identificar a praça que parecia como sempre foi pra ele, a disposição das árvores, o gramado, a fonte central, ainda que com algumas cores novas e objetos estranhos. O mais estranho, mesmo, era a cidade que o rodeava. Os prédios, os carros, o pavimento público, os transeuntes, enfim, teve a certeza de que aquela não era mais a cidade em que vivia, sendo fácil concluir que estava...no futuro - por mais absurdo que isso pudesse parecer. Pensou que havia morrido e que agora seria uma alma vagando pelo tempo, mas não tinha lembrança de qualquer episódio que pudesse ter resultado no seu óbito e só lembrava que, havia um minuto, divagava em sua mesa de escritório. Quase num reflexo, perguntou as horas a uma pessoa sentada no banco ao lado, que, sem olhar para o relógio, ou qualquer outro dispositivo, informou-lhe a hora exata com uma cara de quem não entendia por que alguém perguntaria tal coisa. Sim, estava vivo e agora necessitava saber em qual ano. Levantou-se e começou a caminhar para buscar a resposta, já que não sabia como perguntar isso a alguém sem parecer louco. A cada poucos passos, parava para admirar ou tentar entender as novidades que via pelo caminho. Percebeu que as pessoas não utilizavam aparelhos celulares - o que seria inconcebível em seu tempo -, ainda que muitas conversassem sozinhas como se estivessem ao telefone, enquanto outras faziam gestos com as mãos como se estivessem utilizando um caixa eletrônico imaginário. Obviamente, a tecnologia tinha evoluído além de sua compreensão. Ao alcançar a esquina, um holograma lhe perguntou se necessitava alguma informação ou se gostaria de contratar um seguro (algumas coisas nunca vão mudar, pensou), quando então perguntou qual dia era aquele. "Hoje é o dia três de outubro de 2080", ouviu e abaixou-se vagarosamente até sentar na calçada, onde permaneceu por um bom tempo assimilando a resposta e recebendo olhares curiosos dos transeuntes. A torrente de perguntas que passavam em sua mente tornava impossível pensar, mas seguiu o impulso de levantar e seguir em direção a sua casa, onde ainda morava com seus pais, mesmo já estando com 32 anos de idade. Não queria se distrair e seguiu olhando fixamente para o chão, somente levantando a cabeça para assegurar-se do percurso no meio de toda aquela estranheza. Dez quadras depois, chegava onde parecia ser a rua em que vivia e, de fronte ao seu prédio, deparava-se com uma construção totalmente nova e, é claro, futurista. Admitiu que, se tudo aquilo era verdade, não adiantaria perguntar por seus pais, certamente há muito falecidos, e nesse momento começou a soluçar sem conseguir segurar o choro. Estava sozinho num mundo completamente novo e desconhecido, confuso e com medo. Não tinha os pais, dificilmente encontraria qualquer amigo, e o que iria dizer se encontrasse? Nesse momento, surpreendeu-se consigo mesmo ao ter a convicção, de forma resignada e serena, de que teria de começar de novo, sua vida e suas escolhas. Avaliou o que o desagradava no passado, naquele tempo que ficou para trás, e decidiu que dessa vez seria tudo bem diferente. Iria estabelecer o objetivo claro daquilo que queria para si, no futuro dentro desse futuro, e passaria a dedicar todos os seus esforços para chegar lá, sem se acomodar em qualquer desvio do caminho. Era a sua chance, nada mais tendo a perder e sem ninguém a lhe julgar. Estava livre para ser quem sempre quis, e isso, afinal de contas, era o que tanto desejava. Secou as lágrimas com as mãos e começou a andar, olhando em frente.

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