Afetos blindados
Na semana que passou, comemorou-se o Dia dos Namorados e, no mesmo dia, li essa notícia no Jornal do Comércio que me surpreendeu: "cresce o
total de lares com apenas um morador, que já passam de 11 milhões
no País. O Rio Grande do Sul tem
um dos maiores percentuais de domicílios unipessoais, com 22,3%
da população vivendo sozinha". Segundo a matéria, os "dados revelam uma
mudança significativa no modo de
viver, e de se relacionar", crescendo a "sensação de que, apesar de hiperconectadas, as pessoas estão emocionalmente mais distantes", e que a "facilidade para conhecer
alguém por meio de aplicativos
contrasta com a dificuldade de
construir vínculos afetivos mais
profundos, estáveis e duradouros". Essa super "oferta" gerada pelos aplicativos de relacionamento e meios virtuais faz parecer que existe uma abundância de pessoas dispostas a se relacionar, mas, paradoxalmente - como aponta a matéria -, quanto mais opções, mais difícil de escolher e mais fácil desistir de qualquer potencial relacionamento. Esse tipo de relação, já denominado de situations ships (relações indefinidas), deixa o compromisso de lado e é marcado pela fluidez com que se forma e desaparece. E se o objetivo é não assumir maiores vínculos, nem por isso tais relações são menos frustantes, como observa o psiquiatra entrevistado, Thiago Roza: “Alguém acaba se envolvendo mais do que o outro. Mas como
não há clareza ou profundidade, o
vínculo se rompe rápido e sem espaço para amadurecimento. A repetição disso leva muita gente a
evitar novas tentativas”. O mesmo profissional refere que, a partir da pandemia de Covid-19, "cresceu o número de pacientes relatando um
medo em comum: de se apegar, se
mostrar vulnerável e reviver dores
antigas. Isso se manifesta em comportamentos mais frios, distantes - um 'afeto blindado', que funciona como proteção, mas também
como barreira", entendendo que as pessoas estão mais intolerantes à frustração, o que torna os vínculos menos sustentáveis. Pessoalmente, não tenho condições de avaliar o fenômeno com propriedade científica ou técnica, apenas pela minha experiência e pelo que vejo. Constato que, de fato, os relacionamentos de um modo geral parecem ser mais tênues e pouco duradouros, sobretudo para as gerações mais jovens, e que talvez essa abundância de possibilidades que os aplicativos e redes sociais fomentam, crie, por outro lado, aspectos de comparação, idealização e descartabilidade - como citado na matéria - que fazem com que as pessoas prefiram ficar disponíveis para encontrar alguém que melhor atenda suas expectativas, ao invés de "presas" a um relacionamento. E mais, vejo que, atualmente, esses canais virtuais não se limitam aos mais jovens, já que seu uso hoje é generalizado, inclusive por idosos que, por vezes, revelam uma preocupante promiscuidade. Essa superexposição tem levado, inclusive, a que uniões de longo tempo, com seus desgastes naturais, possam ceder aos apelos desse mar de opções, aumentando as estatísticas do que hoje é conhecido como divórcio cinza. Por outro lado, sigo acreditando que as pessoas, em geral, ainda estejam procurando encontrar alguém para se relacionar de forma mais profunda e duradoura, mesmo que, no caminho, tenham inúmeros encontros superficiais e muitas vezes se decepcionem. Também pela minha experiência como alguém que vive um casamento de longo tempo, não vejo como construir um relacionamento sólido sem entrega e abertura ao outro, sem permitir-se o dar e receber afeto, sem blindagens ou barreiras de defesa. Aprendi também, há muito tempo, que a relação não é inteira enquanto você tem um pé dentro e outro fora dela, como se estivesse pronto a partir pra outra quando aparecer alguém melhor. Ora, o bonito de um relacionamento é justamente você perceber o quanto a pessoa amada se torna melhor à medida que o amor por ela cresce, assim como você melhora para ela, no curso de uma relação a que ambos se permitem viver em profundidade e com total atenção de um ao outro, sem distrações externas, sem ceder à fácil opção de buscar outro alguém e sem receio de sofrer. Afinal de contas, ninguém ama para sofrer, mas para ser alguém melhor para quem se ama e para si mesmo. E se não der certo, ainda assim vai ter sido muito melhor do que ter mantido o seu coraçãozinho blindado e vazio, como já cantou Cazuza: Correr o risco, apostar num sonho de amor. E se por acaso doer demais, é porque valeu. E se por acaso for bom demais, é porque valeu!
*Matéria: "Maioria no País, solteiros
evitam relações duradouras", por Gabriel Margonar, no Jornal do Comércio (edição de 12/06/2025, p. 20).
Comentários
Postar um comentário