Diários da pandemia - #Dia 4: perdas e ganhos

Durante os 12 dias que ficamos em isolamento, no início da pandemia de Covid-19, eu e minha esposa decidimos escrever diariamente sobre um tema que escolhíamos, relacionado àquele momento de tensão e incerteza, tentando nos manter serenos e filtrar o bombardeio de notícias, fake news e tudo o mais que vinha da rua. 

Passados 3 anos desses dias isolados e do pior da pandemia, vou reproduzir aqui - com permissão da Cacá - esses textos que refletem como estávamos vendo e vivendo aquele período tão diferente de tudo o que havíamos vivido até então, e que nos ajudaram a ficarmos conectados à realidade e a nós mesmos.


#DIA 4 (24/03/2020) - TEMA: PERDAS E GANHOS


Ela:

E finalmente a vida se revela como realmente é: uma grande sala de jogos de azar. Estamos todos nela,  somos seus apostadores. Pelos cantos do lugar, encostados nas colunas, aqueles que, tímidos, procuram identificar os processos para escolher um jogo onde não corram riscos- ainda não entenderam que o jogo já começou e os riscos são parte dele. Outros usam suas últimas fichas para tentar consertar as jogadas mal escolhidas de uma vida inteira, com o suor escorrendo em seus rostos, denunciando nervosismo e desespero. Aqueles no centro da sala são experientes: circulam entre as mesas revezando-se nas apostas com uma habilidade impressionante, mostrando que já ganharam e perderam muitas vezes. São jogadores calejados e gostam de serem testados. E reconhecemos facilmente  aqueles que, excitados (e já viciados), apostam frenética e compulsivamente, sem medo de perder- ou sem entender que estão perdendo o pouco que lhes resta. Onde estou nisto tudo? Procure com cuidado: sou aquele jogador que até aqui soube jogar. Ou que até aqui deu sorte, como queira.  Sou discreto não quero despertar desconfiança ou interesse da casa: por isto circulo pelo lugar com discrição. Procuro medir minha coragem e entender até onde posso arriscar sem perder o que já ganhei: e confesso que ganhei muito. Cuido com carinho de cada ficha, e estudo de quais posso abrir mão para arriscar na próxima mesa. De algumas não me desfaço: permanecerão comigo haja o que houver. Sem negociação. Vou ao bar e peço uma bebida. Penso na próxima jogada, enquanto a vida me observa. Ela sabe que, cedo ou tarde, voltarei para a mesa. E que tenho muito a perder- ou ganhar.


Eu: 

Situações de extrema dificuldade geralmente impõem perdas. Maiores ou menores, essas perdas geram desde algum transtorno a grandes danos, individuais ou coletivos, materiais ou puramente emocionais. Levam ao recuo sobre um território antes conquistado e, geralmente, têm um gosto de derrota. No entanto, nesses momentos adversos, tendemos a nos abrir à relativização de tudo o que forma nossas vidas, que passa por uma ressignificação, com mudanças nos pesos e medidas daquilo o que importa. Se, por um lado, perde-se o emprego e o cinto aperta, por outro lado os laços pessoais se estreitam, a compaixão e a solidariedade se fortalecem. Os sonhos cedem à observação mais atenta da realidade, sobre o que já temos e somos, ao invés do que se almejava conquistar. A notícia da melhora da saúde de um amigo passa a ser a mais importante. Sentir a presença de quem se ama torna-se o motivo a comemorar. Sensibilizamo-nos e nos abrimos a reconhecer ganhos onde antes só víamos o trivial, o cotidiano, o esperado. As perdas fazem parte da vida, supere ou suporte! Os ganhos dependem da vida que se tem, reconheça-os ou corra atrás deles!

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