As mentiras consensuais
O ser humano tende a pensar de maneira maniqueísta, separando as coisas em boas e ruins, como um ideal de simplificação pragmática diante de uma realidade complexa. Essa forma de pensar acabou se transferindo, ao longo dos tempos, para as relações interpessoais, consolidando certos dogmas ou convenções que, apesar dos 2015 anos de Era Cristã, ainda não sabemos bem se são próprios de nossa espécie ou de como vivemos em sociedade. Casar, trabalhar, gerar filhos, triunfar - é o que o senso comum espera de cada um. Mas a maioria de nós passa a vida sob a tensão entre atender a essas convenções sociais ou a nossos desejos e impulsos individuais, nem sempre harmônicos entre si. Assim seguimos, sendo resultado de nossas vontades em combate às vontades dos outros.
A propósito disso, e de forma bem melhor redigida, transcrevo o texto abaixo da Martha Medeiros, de quem não sou propriamente um fã ou leitor assíduo, mas a quem admiro por este e outros escritos.
A propósito disso, e de forma bem melhor redigida, transcrevo o texto abaixo da Martha Medeiros, de quem não sou propriamente um fã ou leitor assíduo, mas a quem admiro por este e outros escritos.
MENTIRAS
CONSENSUAIS (Martha Medeiros)
Existem
pessoas felizes e pessoas infelizes, e todas elas se questionam.
Umas bebem champanhe e outras água da torneira, e se fazem as mesmas indagações. Se existe uma coisa que nos unifica são as dúvidas que trazemos dentro. São pequenas angústias que se manifestam silenciosamente, angústias que não gritam, ou gritam somatizadas em úlceras, insônias e depressões. Angústias diante das mentiras consensuais.
Umas bebem champanhe e outras água da torneira, e se fazem as mesmas indagações. Se existe uma coisa que nos unifica são as dúvidas que trazemos dentro. São pequenas angústias que se manifestam silenciosamente, angústias que não gritam, ou gritam somatizadas em úlceras, insônias e depressões. Angústias diante das mentiras consensuais.
O que são mentiras consensuais? São aquelas que
todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos
avós, e que automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para
o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais
nobre e vulcânico que há, tornou-se a maior vítima deste consenso.
Mentiras
consensuais: o amor não acaba, quem ama quer filhos, amor de uma noite só não é
amor, o amor requer vida partilhada, amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural.
Tudo mentira! O amor, como todo sentimento, é livre. É arredio a
frases feitas, debocha das regras que tentam lhe impor. Esta meia dúzia de
coordenadas instituídas como verdades fazem com que muitas pessoas achem que estejam amando errado, quando estão simplesmente
amando. Amando pessoas mais jovens ou mais velhas ou do mesmo sexo ou amando
pouco ou amando com exagero, amando um homem casado ou uma mulher bandida ou
platonicamente, amando e ganhando, todos eles, a alcunha de insanos, como se
pudéssemos controlar o sentimento. O amor é dono dele mesmo, somos apenas seu
hospedeiro.
Há
outros consensos geradores de angústia: o mito da maternidade, a necessidade de
um Deus, a juventude eterna.
Sobem e descem de ônibus milhares de passageiros que parecem iguais entre si,
porém há entre eles os que não gostam de crianças, os que nunca rezaram, os que
estão muito satisfeitos com suas rugas e gorduras, os que não gostam de festas
e viagens, os que odeiam futebol, os que viverão até os cem anos fumando, os
que conversam telepaticamente com extraterrestres, os ermitões, enfim, os
desajustados de um mundo que só oferece um molde.
Todos
nós, que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo,
algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada.
É a parte de nós que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que
é melhor viver de acordo com o estabelecido, mas que, no íntimo, não consegue
dizer amém.
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