#CASO 1: O herdeiro gato

Cheguei ao escritório naquela tarde, após o almoço que não me caiu bem. Abri a porta antevendo o que iria encontrar, e lá estava a figura familiar de Valeska, que me recebeu com um automático boa tarde, sem ao menos levantar o olhar do jornal para saber quem entrava na sala. "Deve conhecer o som dos meus passos", pensei com alguma admiração. Após dar meu boa tarde à secretária, passei-lhe instruções sobre as tarefas do dia e me fechei em minha sala. Não que tivesse muito a fazer, mas gostava de aparentar que tinha, e mais ainda de privacidade - ou de ficar só? Bom, estava só, fazendo anotações para uma audiência próxima, quando Valeska pôs a cabeça pela porta entreaberta e anunciou uma cliente nova, a quem eu disse que entrasse. Seu nome era Maria Adelaide, já idosa, bem vestida - embora com roupas antiquadas - e aparentemente com boas posses, que, após sentar-se, passou a expressar a razão de sua consulta. Disse ela que, já viúva e com o filho morando em outro país, vinha há tempos vivendo apenas na companhia de um gato de estimação, chamado Miau - pouco original, pensei. Mas, tendo alcançado os 80 anos, temia que não lhe restassem muitos dias mais, causando-lhe pavor o que poderia acontecer ao gato na sua falta...pobrezinho. Enfim, foi direto ao ponto, questionando se poderia deixar sua herança ao gato, por testamento, para que ele vivesse suas 7 vidas sem maiores preocupações materiais. A pergunta, obviamente, me surpreendeu. Na hora entendi o porquê da minha escolha pela cliente: se era para ouvir que a idéia é um disparate, que fosse com um advogado barato. Contudo, antes de raciocinar legalmente sobre a questão, não pude me conter de perguntar-lhe sobre a existência de outra pessoa a quem Dona Maria pudesse deixar o gato e, se fosse o caso, algum dinheiro para os seus cuidados. Respondeu-me, então, de forma lenta e carregada de uma certa dor, que não confiava em ninguém para o encargo. Nem mesmo em seu filho que, mesmo longe, parecia espreitar pela chegada da morte à porta da mãe. Que após a morte do marido, perdera, além de seu amor, também seu grande amigo, e daí o gosto pelas pessoas. Disse que, se não fosse a companhia do gato, a solidão lhe teria sido insuportável, e que o passeio diário com o Miau é a única coisa que ainda a motiva a sair da cama. "O senhor sabe o que é viver sozinho?", foi a pergunta que me fez e que, surpreso, respondi de pronto com um inseguro "não", de quem, pego desprevenido, diz o mais conveniente. Há dois anos tenho vivido sozinho sim, curando a dor de ter perdido alguém a quem amava e ainda sem saber como recomeçar a sentir algo por outra pessoa. Sem um bicho de estimação, minha vida tem sido trabalhar, ler, ouvir meus discos e deixar os dias passarem, numa rotina quase monástica. Como o trespasse de um raio, passaram pela minha mente, naquele instante, as imagens daquele dia difícil do acidente que vitimou Beatriz e a mim também, de certo modo inválido desde então. Retornando a atenção àquela senhora posta diante de mim com cara de dúvida, procurei ser direto. "A senhora não pode fazer de um gato o seu herdeiro. Mas eu lhe sugiro que doe a parte disponível de seu patrimônio, por testamento, a alguma instituição confiável de proteção aos animais, sob a condição de cuidarem do Miau". Ela ouviu e pareceu resignar-se com a resposta, como se já a tivesse ouvido antes por outro advogado - o que era provável. Agradeceu, pagou a consulta e despediu-se, não sem antes me dirigir um olhar ao mesmo tempo intrigado e descrente, de quem provavelmente não acreditara na minha resposta a sua pergunta. Fiquei ali sentado, após a porta se fechar, pensando nos riscos de ser solitário. De chegar ao final na vida e só ser capaz de fazer feliz a um gato - bobagem, claro, o gato sequer saberia do agrado, e talvez só viveria comigo por pura falta de opção. Antes de me perder divagando sobre as opções de vida dos felinos, consegui retomar a questão da solidão humana, e da minha em especial, para admitir que deveria me esforçar por sair de minha letargia sentimental e voltar a me envolver com outra mulher, que eu não fazia a mínima idéia de quem seria e de onde poderia encontrá-la. Resoluto, lembrei do samba de Paulinho da Viola e Toquinho como trilha sonora que o momento pedia, e dei um adeus solene a Beatriz...


"Quanto tempo, não sei dizer
Tanta mágoa, não sei contar
Só lembro da solidão que passei
Quando vi meu castelo desmoronar
Muito embora eu esteja
Com saudades de um beijo
Minha vida é melhor assim
Esperando o momento
De viver novamente
O amor que restou em mim"*


*Música "Caso encerrado"   -----------------------------------------------------------------------------------------------------------   Recordando o post de criação do personagem:   Nome: José Carlos Ferronato

Idade: 45 anos

Estado civil: viúvo – a mulher faleceu num acidente de trânsito há 2 anos

Profissão: advogado “clínico geral”, trabalha sozinho num pequeno escritório, num grande prédio comercial antigo com 300 salas, sobre uma galeria de lojas, no centro de uma grande cidade. Tem uma secretária chamada Valeska, que dá expediente no escritório apenas no turno da tarde e cuja idade se supõe ser cinqüenta e poucos anos.

Perfil de clientes: pessoas com algum dinheiro para contratar um advogado ao invés de buscar um defensor público ou fazer justiça com as próprias mãos, geralmente envolvendo casos de família, heranças, pequenos crimes ou desavenças, consultas de todo o gênero e questões às vezes não situadas dentro do largo âmbito do Direito

Formação acadêmica: seus pais eram pobres, porém o estimularam a ler os livros que traziam da biblioteca pública, até que a leitura se tornou um hábito mantido até hoje, o que lhe deu certa erudição e uma fina ironia. Estudou em escola pública e só se formou em Direito, numa universidade privada, trabalhando como escrevente concursado da Polícia Civil. Ao se formar, há 3 anos atrás, largou a Polícia para advogar, mas mantém alguns bons amigos policiais e aprendeu muita coisa sobre a vida e as pessoas – o melhor e o pior delas.

Residência: mora em um apartamento financiado num bairro de classe média/baixa, de dois quartos, ocupando um deles com seus livros e discos

Interesses: música (sambas antigos e bossa nova), literatura, mulher, futebol e trabalho – em ordem aleatória

Situação financeira: instável e normalmente deficitária

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